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Há um ano sem renda, artistas pedem bolsa para o governo

Classe artística alega que aplicação da Lei Aldir Blanc no estado não cumpre função emergencial





O segmento da cultura é um dos mais impactados pela pandemia do coronavírus, pois os espetáculos (circenses, teatrais, musicais ou de dança) dependem da presença de público. Sem possibilidade de renda e perspectiva de retorno, artistas, técnicos e empreendedores culturais vivem de doações da comunidade e se veem obrigados a fechar espaços e vender ferramentas de trabalho. Como voltar, sem nada, depois da pandemia? Como pensar em futuro se o próprio presente é incerto?

Embora a Lei Aldir Blanc (Lei nº 14.017, de 29 de junho de 2020) tenha sido criada para auxiliar financeiramente os fazedores e fazedoras de cultura no país durante o período de isolamento social, o montante enviado pela federação aos estados não chegou integralmente nas mãos dos artistas, técnicos e empreendedores culturais do Paraná. A excessiva burocracia dos editais seria a culpada, de acordo com representantes da classe, que sugerem a distribuição dos mais de R$ 55 milhões retidos pelo estado por meio de bolsas via Doação Civil para que cumpram a função da lei – atendimento emergencial de quem vive da cultura.
Números

Segundo dados do Conselho Estadual de Cultura do Paraná (Consec), o estado recebeu R$ 71.915.814,94 e reteve R$ 55.595.972,90, o que significa um repasse de apenas 23% do recurso, número confirmado pela Superintendência Estadual de Cultura do Paraná. A verba estadual da Lei Aldir Blanc beneficiou somente 2.148 pessoas, cerca de 20% da classe, conforme estimativa do produtor cultural Gehad Hajar.

Se contabilizada a reversão de R$ 13.047.158, montante devolvido pelos municípios, a execução chega a 15%, segundo relatório do Ministério do Turismo, índice que coloca o Paraná como o terceiro estado com a pior taxa de distribuição do dinheiro. Os R$ 72.140.061 restantes permanecem no Fundo Estadual de Cultura para nova distribuição caso sancionado o projeto de lei que prorroga os efeitos da LAB. A superintendente de cultura no Paraná, Luciana Casagrande, afirma que os valores da reversão não podem ser considerados na conta do repasse, porque “chegaram no momento em que não havia tempo hábil para sua execução, uma vez que a Lei Aldir Blanc previa a aplicação de recursos até 31 de dezembro de 2020”.
Motivo

A baixa procura e bloqueios gerados por contemplação prévia em auxílio emergencial federal ou em editais municipais da Aldir Blanc são os motivos que impediram a entrega do dinheiro aos trabalhadores da cultura, segundo o governo estadual. A superintendência coloca, ainda, a questão da exigência, estipulada na lei, de que parte da verba seja alocado na forma de fomento, sem possibilidade de virar bolsa.

“Infelizmente a procura da classe resultou em 22,54% de recurso pago. 80% dos recursos da Lei Aldir Blanc eram destinados ao pagamento da Renda Emergencial. Ocorre que um dos critérios de acesso a essa renda era que o postulante ao benefício não tivesse recebido o Auxílio Emergencial do Governo Federal. No Paraná, este Auxílio Emergencial do Governo Federal teve uma ampla cobertura, de forma que grande parte dos trabalhadores e trabalhadoras da cultura já haviam recebido o benefício, ficando impedido de receber o auxílio da Renda Emergencial Mensal da Lei Aldir Blanc. Os recursos foram disponibilizados para a classe por meio de editais, contudo o proponente só poderia participar com o mesmo projeto em um edital, ou seja, tinha que optar entre o estado ou o município. Dada a exiguidade de tempo, muitos optaram por participar de editais do município, onde eram mais conhecidos e teriam mais chances de serem contemplados”, explica a Superintendente de Cultura do Paraná, Luciana Casagrande.

Já os representantes da classe, como o presidente do Sindicato dos Artistas e Técnicos em Espetáculos de Diversões do Estado do Paraná (Sated-PR), Adriano Esturrilho, afirmam que muitos profissionais não foram contemplados com qualquer tipo de auxílio. O problema estaria na má gerência do governo estadual, que utilizou o formato de edital, com critérios excludentes e exigência de contrapartida em parte da seleção, além de não ter comunicado de forma eficaz as possibilidades e processos de participação. “Muita gente não conseguiu acessar, porque os editais que foram realizados exigiam muitas certidões negativas, ou seja, exigiam que os trabalhadores e trabalhadoras estivessem sem dever nenhum imposto, tivessem tudo em dia, o que não é compatível com o momento emergencial que a gente vive”, afirma Adriano.

Além da questão da burocracia, há o problema de se exigir, na pandemia, a entrega de um produto. “Não é o adequado em uma pandemia a gente criar qualquer tipo de formato que nos coloque na rua trabalhando”, diz a atriz, empreendedora cultural e coordenadora da Frente SOS Cultura, Verônica Rodrigues.

Adriano concorda: “Não é o momento de levar em consideração quem tem a melhor peça ou o melhor CD, e sim de utilizar o recurso para atender as pessoas, independente da entrega de um produto cultural. A gente está falando da assistência básica a uma categoria que está há um ano sem poder trabalhar.”
E a técnica?

Cultura não se faz só com um artista e uma ideia, ela depende do pessoal da graxa, do cenografista, do cenotécnico, do bilheteiro, do operador de som, de iluminação, da costureira. Existe toda uma cadeia por trás do produto cultural, que sofre quando é impossível juntar pessoas na plateia ou na coxia. Os editais, além de não atenderem à finalidade emergencial da lei, excluem profissionais não versados em editais ou que não costumam vender produtos artísticos diretamente, como os técnicos.

“Se não fosse nós fazermos os nossos próprios movimentos, o Salve a Graxa, que é da família camisa preta, a categoria estaria passando fome”, afirma o técnico de som Lauro Oliveira. O Salve a Graxa Curitiba nasceu em março de 2020 da necessidade de amparo à classe técnica, que em sua maioria não possui vínculo empregatício. O grupo realiza campanhas para arrecadar cestas básicas, produtos de higiene e recursos para o vale-gás. “A situação dos técnicos é complicada. Estamos há um ano sem trabalhar e até agora nada, não tivemos ajuda do governo. A Lei Aldir Blanc não chegou a nós, da forma que ela foi feita aqui no estado do Paraná, na forma de editais, não contemplou a técnica, que é, a meu ver, a parte mais que está sofrendo mais agora”, diz Lauro.

A situação dos trabalhadores e trabalhadoras do circo não é diferente. Fernando Fisher, diretor do Circo Vostok, afirma que os circenses não têm condições de pagar por luz e água e dependem de doações de alimentos pela comunidade. “Enquanto não entra dinheiro na bilheteria, a gente precisa sobreviver. Depois de um ano parados, já virou uma questão humanitária. Temos 31 pessoas morando aqui no circo hoje. Não é uma cesta básica que resolve. Tem gente vendendo material, caminhão, lona, porque sabe que não vai aguentar esse tempo parado. Muitos circos não vão retornar, as pessoas estão desistindo. Se os governos não ajudarem, a tendência é que o circo acabe”, diz Fisher.
A lei

A Lei Aldir Blanc (LAB) determinou três categorias de distribuição do recurso em seu artigo segundo. O inciso I coloca o formato de renda emergencial mensal aos trabalhadores e trabalhadoras da cultura. O inciso II é direcionado aos espaços artísticos e culturais, cooperativas, organizações comunitárias, microempresas e pequenas empresas culturais, que podem se cadastrar para receber subsídio mensal para manutenção dos locais.

Os editais estão previstos no inciso III, juntamente com “chamadas públicas, prêmios, aquisição de bens e serviços vinculados ao setor cultural e outros instrumentos destinados à manutenção de agentes, de espaços, de iniciativas, de cursos, de produções, de desenvolvimento de atividades de economia criativa e de economia solidária, de produções audiovisuais, de manifestações culturais, bem como à realização de atividades artísticas e culturais que possam ser transmitidas pela internet ou disponibilizadas por meio de redes sociais e outras plataformas digitais”.

De acordo com dados do CONSEC – Conselho Estadual de Cultura do Paraná, dos R$ 55.595.972,90 estaduais não executados, R$ 26.678.325,98 sobraram dos incisos I e II e R$ 28.917.647,00, do inciso III.
Solução

Diante da possibilidade de aprovação do Projeto de Lei 795/2021, que estende os efeitos da Lei Aldir Blanc e dá aos estados e municípios mais tempo para a alocação dos recursos em projetos culturais já aprovados, a classe artística se uniu para trazer novamente à discussão a proposta da Bolsa Cultura Paraná.

A solução proposta pela Frente SOS Cultura e pelo Fórum Estadual de Cultura do Paraná consiste em distribuir o dinheiro restante na forma de bolsas, por um chamamento ou edital simplificado, como foi feito com o auxílio emergencial do governo federal.

“O valor necessário para montar um produto cultural é muito maior do que poderia ser ofertado via auxílio para a gente conseguir trabalhar. Com valores menores, só para subsistência, é possível atender mais pessoas nesse momento”, afirma o presidente do Sated-PR.

Segundo o Gehad, com os R$55 milhões não usados seria possível auxiliar 12 mil famílias com cinco parcelas de R$ 1.100,00. Caso a demanda fosse maior que o montante disponibilizado, a distribuição seria feita por ordem de cadastramento dentre aqueles que comprovarem trabalhar na cadeia produtiva de arte e cultura e se autodeclararem em situação de necessidade ou vulnerabilidade.

A proposta da Bolsa Cultura tem por base os recursos de fomento da Lei Aldir Blanc e dos fundos de cultura. Os mecanismos de efetivação da bolsa poderiam ser via Doação Civil, a partir de edição de lei ou emenda, ou por meio dos programas de apoio e incentivo à cultura já existentes, com edital específico. A Doação Civil é considerada pelos representantes da classe como a melhor opção para encaminhamento de verbas emergenciais por ser mais simples e ágil, não demandar pagamento de impostos nem exigir regularidade fiscal, contraprestação de produto e análise de mérito.
Impasse

Para a Superintendente de Cultura, a proposta é inviável. O governo estaria de mãos atadas pela determinação de que ao menos 20% do recurso seja destinado às ações emergenciais previstas no inciso III: “Recebemos essa proposta de alguns membros do CONSEC – Conselho Estadual de Cultura e submetemos à apreciação de um grupo interinstitucional formado pela Ordem dos Advogados do Brasil-PR, Tribunal de Contas da União, Tribunal de Contas do Estado, Controladoria Geral do Estado, Controladoria Geral da União e a Procuradoria Geral do Estado. Todos foram uníssonos na orientação de que a proposta da bolsa social não estava compatível com a Lei. Por dever de ofício, encaminhamos para a Procuradoria Geral do Estado que ratificou a posição do grupo interinstitucional. A Lei, 14.017/2021, prevê ações de cunho assistencial e ações de fomento. Segundo os órgãos para os quais submetemos a análise, a proposta da bolsa social pretendia transformar os recursos do inciso III, no inciso I, o que não poderia ser realizado. Ou seja, não podemos transformar recursos destinados ao fomento em recursos de ordem assistencial.”

Gehad afirma que a proposta não prevê a exclusão do inciso III, mas o uso de outros meios disponíveis no próprio texto da lei ou mesmo de editais simplificados. “A Lei diz claramente: ‘e outros instrumentos destinados à manutenção de agentes’. Essa parte dá margem à bolsa.”

Já Adriano entende que existem desafios no campo jurídico, mas que podem ser resolvidos com vontade política: “Se houver uma mudança de postura da Superintendência, que é a figura principal nesse sentido, se houver vontade política por parte do poder público, a gente sabe que é viável levantar isso. O momento é esse. Tem que fazer uma legislação em caráter de urgência para resolver questões técnicas. É um trabalho junto ao legislativo estadual e talvez a alguns municipais que aderirem, mas a ideia é poder usar esse formato justamente para ampliar o acesso aos recursos.”

“O dinheiro existe e não consegue ser repassado. Enquanto isso, os artistas e técnicos estão todos passando fome, literalmente. É gravíssimo. É uma guerra política gigantesca”, diz Verônica.

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