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O negro Turíbio e Gehad, o pardo (Gazeta do Povo)

Foto: Antonio More / Arte: Benett
José Carlos Fernandes
O líbano-brasileiro Gehad Ismail Hajar não vacilou na hora em que o pesquisador do IBGE lhe perguntou de que cor era. “Pardo”, disparou, com a naturalidade de quem devora uma esfiha do Baba Salim. Se raça é aquela com a qual cada um se identifica, não mentiu: é o “turco” mais mestiço da praça, como confirma sua jovem biografia. A ela.
Gehad tinha 9 anos de idade quando sua mãe o “emprestou” para o desfile dos 300 anos de Curitiba, a pedido do então prefeito Rafael Greca. Representaria a comunidade árabe. Fez bonito, mas saiu da avenida com o juízo do avesso. Na casa de família, de tradição sunita, a língua era o libanês e se alimentava como se morasse em Khirbet Roûha. Na rua, tinha de falar português. Não deu outra: inventou de entender a que quintal pertencia de fato e acabou por se tornar quem é – um paranista versão 3.0.
Assim falando, parece mentira. Gehad, de apenas 30 anos, soma duas décadas de pesquisador. Mal terminou o desfile do tricentenário, dobrou a kafiaque levava na cabeça e devorou os escritos de Saint-Hilaire. Só não voou no tapete voador, pois de resto... Tinha pressa de aprender – incluindo a tocar rabeca caiçara.
Em meses, o guri citava Oscar Wilde como se fosse um amigo invisível. “Virei um dândi”, brinca o sujeito que fala até pelas sobrancelhas, feito um maestro. Favorecido pelo sono de anacoreta, deu de bater recordes da leitura. Até hoje dorme quatro horas por noite. O saldo é equivalente ao número de faculdades – Pedagogia, Direito, Ciências Políticas e Relações Internacionais.
Trata com fluência de assuntos tão diversos, do estranhíssimo “politon”, violino de sopro inventado pelo paranaense José Nogueira dos Santos, ao herói Guairacá. Depois solta os bichos na ditadura militar, sobre a qual escreveu a peça Memórias torturadas. A aventura lhe apresentou a outro prazer, além de devorar seus 5,7 mil livros cheirando a guardado: o gosto pela polêmica. Por pouco a experiência dramatúrgica não lhe rendeu um estágio atrás das grades.
No momento, Gehad desenvolve nada menos do que 18 pesquisas ao mesmo tempo. Algumas delas são sobre negros no Paraná, assunto no qual é bamba. Eis o ponto. Na adolescência, o prodígio da comunidade libanesa conheceu o historiador diletante Wilson Bóia. Grudou no veterano feito carrapicho. Foi Bóia quem lhe falou do negro Joaquim da Costa Turíbio, um “popular” da Curitiba do fim do século 19 e hoje uma das obsessões de Hajar.
As informações sobre Turíbio são flores raras. Nasceu na Colônia Dantas, Água Verde, em 1828, filho do tamanqueiro “Nhô Costa e de uma certa Maria...”. Alforriado, amealhou algum dinheiro como comerciante da Casa da Fortuna, na Rua Riachuelo. Era dado a jogatinas. Do jogo do bicho ao jogo de “pela”, ancestral do tênis. Falido, saiu pelos sertões do Brasil. De volta à cidade, fez-se um sem beira, identificado pelas roupas extravagantes, por tocar matraca nas procissões e por bater ponto na Igreja dos Pretos de São Benedito. Seria uma figurinha exótica como Bataclã e Chico Bosta, não fosse um detalhe: Turíbio teria sido o primeiro negro alfabetizado da cidade.
O assunto é fascinante. E obscuro. Algumas informações sobre Turíbio vêm da tradição oral. Só não ficou reduzido ao rodapé da história graças a Wilson Bóia, Alberico Figueira, e agora a Gehad, que folheia periódicos antigos e espana arquivos atrás de notícias. A gente ouve o ele diz e se belisca: Turíbio editava um jornal, o Redemoinho, e fundou uma sociedade para ex-escravos, o Clube Modelo. Tudo indica que alfabetizava outros negros de maneira informal.
Havia quem fizesse o mesmo, mas de maneira regrada, como o professor Cleto da Silva, suposto criador de uma escola para negros na antiga Rua Fechada. Gehad pena para encontrar conexões entre Turíbio e Cleto, sem sucesso. Mas se sente bem à vontade para afirmar que os dois são “pais” da Enedina Marques, a primeira negra a se formar em Engenharia no país, e motivo desse texto.
Para quem está sentindo no meio da novela, aqui vai o empurrãozinho: um movimento reivindica que o câmpus Rebouças da UFPR seja batizado com o nome da engenheira. Está um sururu. O que Gehad diz faz sentido. Cleto morreu em 1912. Turíbio, em 1913, ano em que Enedina veio ao mundo. Há 101 anos, ela encontrou à sua volta alguns pares que sabiam ler e escrever. E fez o resto dessa revolução silenciosa. O nome dela, e por tabela o deles, pode não virar fachada da UFPR, mas anda mexendo com meio mundo. Alalaô. É das arábias.

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