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A História Oculta de Curitiba

Entrevista concedida para a jornalista Adriana Baldini, da Revista Duque n. 63, Jan/Fev de 2014, ISBN n. 2319-0353, pág. 36 a 39.







Há sempre algum forasteiro que aparece com aquela  clássica pergunta aos curitibanos: "qual é o significado  da palavra Curitiba?" Se você respondeu quase  que, automaticamente, "muito pinhão",  está na hora de rever alguns  conceitos.

Como toda  velha e tradicional capital, a do Paraná  não poderia  ser diferente: misteriosa, lugares  e  sua  devida  importância destruídos  pelo tempo  e, claro, fatos contados pela metade.

Mas eis que, um dia, um curitibano nato resolve questionar as tradicionais versões oficiais. Gehad Ismail Hajar, de apenas 30  anos,  é bacharel em Direito e em Ciência  Política,  especialista em Gestão  Cultural  pela universidade de Girona e, ainda, possui mais  uma  infinidade  de especializações – além  de  um  vasto  conhecimento, claro.

Ele, juntamente com outros historiadores tidos como contemporâneos, chegou a levantar, por conta  própria,  uma parte  da história  de Curitiba que estava  oculta  e apresenta, nesta  entrevista, fatos surpreendentes.

EM 2013,  A CIDADE DE CURITIBA COMPLETOU 320 ANOS. VOCÊ QUE VIU E BUSCOU OUTRAS INFORMAÇÕES A RESPEITO DA DATA DE FUNDAÇÃO DA CIDADE, CONCORDA COM A DATA DE FUNDAÇÃO ?

Não. A data que se começa  a contagem destes 320 anos é, na realidade, da fundação da Câmara  Municipal  de Curitiba,  no ano de 1693.  Falar sobre  a  fundação da  cidade  realmente é  complicada, principalmente pelo fato de os historiadores antigos  se basearem apenas nos relatos  de Romário Martins, ou seja, de uma única fonte. Temos cópias fiéis de documentos portugueses que desmontam as histórias  tidas  como oficiais, incluindo  atas,  testamentos, ordens,  mandatos de prisão.  O mais antigo deles  que demonstra o controle  da cora portuguesa sobre o território da atual  Curitiba,  datando o ano de 1639. Portanto, a cidade  possui,  pelo menos,  374 anos.


"Ignorar essa parte da história é apagar  de Curitiba a sua função civilizatória."

   
POR QUAL MOTIVO TODOS ESTES FATOS FICARAM OCULTOS POR TANTO TEMPO?
Devido a um processo  histórico.  O Paraná  ficou sob o poder político da província  de São  Paulo  de  1709 a 1853. Neste  período, não  tivemos quase nenhuma autonomia, perdendo muito da nossa  identidade local. Nossos grandes expoentes políticos  e eclesiásticos tinham de ir até São Paulo para  fazer  política  e,  neste tempo, perderam-se documentos e intérpretes da história paranaense. Apenas e 1853, quando o Paraná voltou a ter autonomia política, é que  se retomou  a discussão sobre  a identidade paranaense.

A HISTÓRIA DIZ QUE A CIDADE FOI FUNDADA NA PRAÇA TIRADENTES, COMO HÁ HOJE UM MARCO QUE CARACTERIZA O NASCIMENTO DA CIDADE. O QUE DIZER SOBRE?

Esta  pergunta tem  a ver com  a descoberta de  ouro no continente sul-americano. O primeiro  ouro  não  foi descoberto nas  margens  do  lago Titicaca,  no Peru, ou em Minas Gerais, como apontam as pesquisas mais tradicionais. Ele foi descoberto em Paranaguá, e foi isso que  atraiu  os portugueses ao sul do país.  Quando  descobriram o ouro de aluvião nas barricas  dos rios Itupava  e Nhundiaquara, presumiram que achariam as minas, rio acima. Curitiba surgiu deste movimento como um  agrupamento de mineradores que buscavam ouro nas margens  do rio Atuba, da mesma  maneira  como  surgiram  as  atuais  cidades de Campina  Grande do Sul, São José dos Pinhais  e Pinhais. A Vilinha de Curitiba cresceu no Bairro Alto e a sua movimentação principal  foi transferida para a Praça Tiradentes entre  1648 e 1654  aproximadamente. O local foi escolhido por ser um terreno alto entre dois rios, o Ivo e o Belém. A última referência histórica  da Vilinha do Bairro Alto é de 1821, mas  já sabemos que ela está  em ruínas.  No entanto, para  a felicidade dos historiadores, na década de 1970, foi localizada, com exatidão,  sua antiga  entrada, onde hoje é o final da rua Marco Polo, no Bairro Alto.

ESTUDOS INDICAM QUE, QUANDO CURITIBA SURGIU, A CIDADE IA DE QUATRO BARRAS, PROXIMO A SERRA DO MAR, ATÉ PERTO DE GUARAPUAVA. EXISTEM DOCUMENTOS QUE COMPROVAM QUE ESTE ERA, INICIALMENTE, O TAMANHO REAL DA CIDADE?

De acordo  com o Termo da Câmara  de Curitiba,  isto é, a jurisdição  do poder local  de  Curitiba,  a  cidade  ia  da  Vila (que  concentrava o ‘marco  zero’,  ou pelourinho, na atual  Praça  Tiradentes, e se estendia algumas  léguas  adiante, até  o Juvevê,  que  já possuía  esta  denominação), ao Norte,  até  o vale do Barigui, a Oeste,  e da entrada do Cajurú (hoje, Cristo Rei), a Leste,  até o Batel, ao Sul.  Fora destes limites, estava  o rocio da vila (as plantações no entorno) ou os sertões, como eram chamados. Nestes  campos  (Campos  de  Coritiba, Campos  Gerais  de  Coritiba, Campos de Guarapuava, Campos  de  Palmas), a coroa portuguesa procurava avançar  seus domínios  sobre  a coroa hispânica. Afinal, onde houvesse portugueses, haveria domínio português sobre o território. Sendo  assim,  da metade do século  XVII ao final do século  XVIII, Curitiba abrangia  esse  enorme  território que incluiu,  ainda,  áreas  de Santa  Catarina  e do Rio Grande do Sul por certo período. Tanto que,  a cidade  de Florianópolis, por exemplo,  foi fundada pelo ouvidor de Paranaguá à época.  Outras  tantas cidades do atual  Rio Grande do Sul foram fundadas por bandeirantes curitibanos.

QUAIS ERAM AS CARACTERÍSTICAS DA POPULAÇÃO DE CURITIBA DA ÉPOCA DE FUNDAÇÃO?

Portugueses, seus  descendentes ou  de  origens  próximas  – desde  que  convertidos ao cristianismo – faziam  parte  de  uma  elite  denominada “homens bons”. Também faziam parte dela quem exercesse, gratuitamente, cargos de vereador, ou quem tivesse posses  e, muitas  vezes, membros  de ordens religiosas, que eram chamados de “homens de sã consciência”.  Negros e, mais tarde, imigrantes de outros países formavam uma sociedade paralela  que demorou para se unir com a arcaica  elite seiscentista lusitana. Talvez aí esteja  uma das explicações para o famigerado problema  identitário de Curitiba.


"Os pais e professores devem estimular seus filhos e seus alunos a ter o costume de estudar a história das pessoas que dão nome às ruas do seu bairro e da sua cidade. O paranaense tem que buscar construir uma identidade real da sua própria história, pois estamos bastante atrasados nisso."


ALÉM De MARTIN AFONSO,  ROMÁRIO MARTINS  E ÉBANO PEREIRA, HÁ OUTROS NOMES FUNDAMENTAIS QUANDO SE REFERE À FUNDAÇÃO DE CURITIBA?

Sim, Mateus  Martins Leme. Foi o primeiro Capitão-Mor de Curitiba e quem atendeu aos  pedidos  de  melhorias  da  população de  então,  promovendo  a primeira  eleição em 1693, o que  instituiu os poderes  políticos  da cidade. Outro povoador de quem não se pode esquecer foi Baltazar  Carrasco  dos Reis, cujos descendentes povoaram o interior dos estados do Paraná  e São Paulo.

QUAIS SÃO AS  VARIAÇÕES DO NOME CORRETO DA CIDADE DE CURITIBA?

Curitiba quer dizer “muito  pinhão”, mas isso é sabido.  Porém,  o nome inicial  (e,  talvez,  mais  correto)  seria  Coritiba,  que  significa  “muito  porco”. Falar sobre isso sempre  gera polêmica, mas não há muito o que fazer, uma vez que  tudo  isso  está baseado em  documentos. O nome  inicial  da  cidade  era  "Vila de  Nossa  Senhora da  Luz e Bom Jesus dos Pinhais de Curitiba" e há uma redundância nas duas  últimas palavras  se  traduzimos a  palavra  Curitiba como “muito  pinhão” – Vila de Nossa Senhora  da Luz dos Pinhais  de muito pinhão?  Levantando-se os dados, principalmente as pesquisas mais recentes, como de Francisco Filipak, esta  versão cai por terra.  Cory, em tupi, é “porco”.  Tiba, é “muito”. Traduzindo  Corytiba, tem-se “muito  porco”.  Naquela  época,  em  Curitiba,  havia  muitos  porcos  selvagens, os catetos. Os índios tinham  a região como um lugar próspero,  uma vez em que se encontrava fartura  de porcos – ou seja,  sem qualquer conotação pejorativa,  muito pelo contrário! Os porcos vinham comer as pinhas  caídas  e eram mais fáceis de se abater. Em uma simples  análise  das atas  da Câmara de Fundação de Curitiba,  é possível identificar  a preocupação dos vereadores  com a invasão dos  porcos selvagens  na  cidade  que,  naquela época,  era  muito  pequena. Em 1929, o presidente da Câmara Municipal de Curitiba, Romário Martins, uniformizou a ortografia do nome da cidade, já que havia muitas  versões (Corytiba, Corituba,  Coriatuba).  Ele acabou  escolhendo apenas o topônimo oficial, “Curitiba”, dispensando o longo nome Vila de Nossa Senhora  da Luz dos Pinhais.

QUAL A  IMPORTÂNCIA DE A POPULAÇÃO SABER DESTA REAL VERSÃO DA HISTÓRIA - E NÃO AQUELAS QUE SÃO CONTADAS EM SALA DE AULA?


Nós  somos  o resultado de  nossa  formação  identitária com  os  elementos locais.  Ninguém é brasileiro, simplesmente. Somos todos brasileiros  de algum lugar.  O conhecimento e o reconhecimento da real história curitibana justificam-nos como  povo e,  como  tal,  nos  dá  importância frente  à atual configuração territorial  brasileira. O que seria do Brasil sem a revogação do Tratado de Tordesilhas?  uma efêmera  faixa litorânea?  Pois bem,  o principal motivo para a expansão  territorial  brasileira  via revogação de Tordesilhas – e assinatura de novos tratados de fronteira  – foi o argumento  de fundação de vilas portuguesas em território até  então  espanhol. Neste sentido, Curitiba foi a principal  Vila citada  pela diplomacia lusa.  Só isso já nos faz centro  da historiografia  brasileira  e poderia  justificar  a nossa  identidade como povo. Pena  que isso ainda  é desconhecido e pouco difundido.

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